quinta-feira, 10 de novembro de 2011

O "artevismo" de Carlos Latuff - parte I


A 'prosa' começou com um gosto em comum, a banda The Clash, motivada pela camiseta usada na ocasião. A partir daí iniciei meu bate-papo com Carlos Latuff, 42 anos e duas décadas dedicadas aos desenhos. Com seus traços, o carioca sintetiza e captura ideários políticos, unindo arte e ativismo, mostrando que o artista não está apartado do processo político-social. 

Mesmo que suas charges não estampem grandes 'jornalões' do mainstream midiático, Latuff é um dos maiores cartunistas do Brasil na atualidade. Situação rara por aqui. "O senso comum é que cartunista é o cara que trabalha para grande imprensa fazendo piada, sendo engraçadinho (sic)", explica.

Seus desenhos foram parar em cartazes, camisetas e pôsteres de manifestantes durante a Primavera Árabe. Suas charges chamaram tanta atenção na Tunísia e no Egito, que os rebeldes da Líbia passaram a pedir seus desenhos nos acontecimentos que sucederam a queda de Muamar Kadafi. Esses e outros momentos - como seu envolvimento com os zapatistas do México e com a Causa Palestina - marcam o trabalho de Latuff.

“A charge tem poder de sintetizar um tratado, capturar a essência da mensagem, ela consegue se comunicar com gente de outras línguas, religiões, culturas diferentes através da imagem”, diz o cartunista que iniciou seu trabalho na imprensa sindical, onde segue atuando.

Latuff esteve recentemente em Foz do Iguaçu no I Encontro Mundial de Blogueiros e falou ao Sítio Coletivo. A conversa foi longa e precisou ser dividida em duas partes. Acompanhe a primeira parte dessa 'prosa'. 

[Sítio] 'Artevismo'
[Latuff] Antes de eu ter consciência política e social, eu era um artista que sabia desenhar. Depois a ficha caiu para o fato que o artista não vive isolado na sociedade, não está acima das ideologias, das necessidades, ele é um cidadão comum. Acontece que por ele ter uma aptidão, uma habilidade, ele acaba se destacando. Por conta disso, acho importante que o artista coloque seu trabalho a serviço da transformação, das causas sociais. Ele deveria - não vou dizer que tem pois é impositivo - entender que seu trabalho não está apartado do processo social e político. Não precisa ser um artista militante 24 horas, cito o que Botero faz [Fernando Botero, artista plástico colombiano], você pode dedicar parte do seu trabalho para instigar e promover reflexão, não fazer somente arte para decorar parede. Botero é um cara de galeria, da pintura, conhecido, badalado, mas que faz trabalhos relevantes sobre a Colômbia, sobre a violência, sobre Abu Ghraib, sobre Guantánamo.

Imprensa sindical
Ainda atuo na imprensa sindical, é meu ganho pão e tenho orgulho de trabalhar com a imprensa sindical. O problema da imprensa sindical é que ela não se entende como imprensa que vai disputar hegemonia, ela é muito voltada para sua classe. Existem algumas experiências, eu trabalho para uma revista chamada Ideias em Revista, do Sindicato dos Servidores das Justiças Federais no Rio de Janeiro, que trata de vários temas, não só da categoria. Grande parte do setor é dedicado quase que exclusivamente a temas das categorias. A imprensa sindical é grande, me refiro a imprensa sindical de esquerda, não a sindical 'pelega'. Tem grande amplitude e poderia fazer contraponto com a grande imprensa, disputar hegemonia, como diz o Vito Gianotti. Está faltando isso nela, fazer disputa.

Zapatismo e Palestina
Meu primeiro contato com os zapatistas foi interessante, foi no final dos anos 90, era um momento que eu já tinha sete ou oito anos de imprensa sindical, mas só que naquela época minha atuação na imprensa sindical era profissional, não tinha envolvimento ideológico com as causas. Esse contato com a imprensa sindical foi criando um acúmulo e a ficha caiu realmente quando eu tive contato com os zapatistas. Comecei fazendo arte para grupos de solidariedade à causa na internet, percebi que a arte não é como trocar lâmpada, você pode fazer arte fazendo diferença. Os zapatistas abriram meus olhos para uma arte a serviço de uma causa justa. A partir desse primeiro trabalho com o zapatismo eu pude fazer o trabalho com os palestinos, que culminou com minha visita a Palestina. Depois de ver aquela realidade dura, não tinha outra coisa a fazer do que voltar ao Brasil e me tornar um apoiador da causa.

Ser cartunista no Brasil
Quando se fala em artista o que as pessoas pensam? Celebridade, o sujeito que faz novela, esse é o artista. O cara pensa: "ah, ele faz charges, é para Folha (sic)...". A grande imprensa construiu um senso comum de que cartunista é quem trabalha para grande jornal, o artista é que o aparece na televisão, que faz novela. Esses conceitos artificiais são criados cuidadosamente. Temos um encontro de cartunistas e dificilmente eu sou chamado porque para eles eu não sou cartunista, eu sou outra coisa. Uma vez eu estava num debate com o Chico Caruso e o Jaguar, e o Chico falou: "O Latuff não é cartunista, é um ativista". Dentro desse censo comum são duas coisas incompatíveis. Achei interessante ele dizer aquilo, pois representa a essência do pensamento majoritário. Cartunista é o cara que trabalha para grande imprensa para fazer piada, para ser engraçadinho. Se ele tem um viés ideológico mais marcado, se ele decide apoiar causas populares, se defende os sem-terra, os sem-tetos, se é contra violência policial, se defende Palestina, ele é um propagandista, um ativista, um militante, um radical, mas nunca um artista.

Primavera Árabe
Os egípcios conheciam meu trabalho sobre a Palestina e viram charges sobre a Tunísia. Dois dias antes dos protestos começarem, no dia 25 de janeiro, me acionaram pelo meu twitter (@CarlosLatuff) me pedindo charges sobre os protestos que ainda estavam sendo planejados. Fiz cinco charges, mas fiquei preocupado, pois pensei: "o regime do Mubarak é muito mais organizado e brutal do que da Tunísia, pois o Egito iria ter um papel fundamental na região, então pensei esse pessoal vai ser esmagado". Começaram os protestos e vi fotos de agências internacionais e dos próprios egípcios segurando minhas charges. Aquilo me deu convicção que o trabalho que eu estava fazendo era relevante para aquele povo, isso para mim é a maior conquista, que não produzo peça de coleção, artigo de luxo para ser vendido ou leiloado. É uma arte viva, arte que serve às pessoas. Não é aquela charge que você vê um dia no jornal e no outro dia na lata de lixo. A partir do momento que alguém imprime, quando outro veículo usa, quando alguém salva, há o esforço para trazer aquele desenho da internet para a vida real. Você investiu um sentimento ali, você não levanta uma charge do Mubarak levando uma sapatada no Cairo por nada, mas sim porque aquilo era a voz dele também, era a expressão que ele sentia, me orgulho muito em saber que fiz algo para expressar a voz de um povo diferente.

Occupy Wall Street
Todo movimento que questione o establishment, que pretenda quebrar paradigmas, quebrar rupturas é bacana, mas esses Occupys não são movimentos de massa, diferente do que ocorreu no Egito, com dois milhões de pessoas nas ruas. Lá tínhamos uma ditadura clássica, tosca, sem verniz algum, esse tipo de regime suscita naturalmente as pessoas à indignação, tem um acúmulo e uma hora estoura, as pessoas não aguentam. Quando se tem uma falsa democracia é muito mais fácil de controlar as pessoas, você tem uma sensação de democracia. Por exemplo, você chega na Era Mubarak e diz claramente "isso é uma ditadura" e ninguém diz o contrário, pois você tem as provas. Mas você não tem como dizer que os EUA é uma ditadura, mesmo que seja, mesmo que tenha momentos de censura, repressão, ação da polícia, assim com não podemos dizer que o Brasil é uma ditadura objetiva, mesma coisa no Chile, você não pode dizer que o sistema do Piñera é a mesma coisa da ditadura do Pinochet, quando você consegue mascarar um regime autoritário em democracia as pessoas não sentem que estão sendo oprimidas e elas não reagem, existem dissidências como é no caso do Occupy Wall Street. Se fosse um movimento de massa eles tomavam aquilo lá, eles entravam no prédio. Enquanto a polícia conseguir reprimir é porque não é um movimento grande, no momento em que a polícia não conseguir reprimir você tem um movimento de massa, não dá mais e tem que mandar o exército, assim como no Egito. Nos EUA isso está longe de acontecer, se acontecer não será tão cedo. O movimento de massa que realmente assustou o sistema por lá foram os levantes de Los Angeles [1991], quando a polícia espancou aquele motorista negro [Rodney King], foi tudo filmado e a justiça soltou os policiais, então houve o levante em Los Angeles, que deu até o nome de um disco do Rage Against The Machine chamado The Battle of LA. Lá a polícia não segurou, eles mandaram a guarda nacional, mas mesmo assim foi retomado o controle depois. O Occupy ainda é um movimento de pessoas esclarecidas e a grande massa ainda não é esclarecida. 

Manifestante levanta charge em Cairo, no Egito

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