Em Diários de Motocicleta, um bioquímico
prestes há completar 30 anos e um estudante de medicina prestes a concluir o
curso resolvem se aventurar por uma América até então conhecida apenas nos
livros. Para isso, a dupla de naturalidade argentina usa uma motocicleta Norton
500, do ano de 1939, carinhosamente apelidada de 'La Poderosa'. O destino daqueles
que deixariam de ser 'simples jovens' na história de nossa 'Pátria Grande' vocês devem
conhecer.
A aventura de Alberto Granado e Ernesto Guevara sempre esteve no imaginário da juventude latino-americana. Esse espírito aventureiro de nosso mestiço - e por isso - lindo continente é que move um grupo de artistas argentinos que há cinco meses está na estrada. Com idade entre 21 e 24 anos, eles atendem por 'Movimento Buena Vista' e já passaram por outros países da América do Sul, como Chile, Peru e Bolívia. Atualmente se aventuram no Brasil, onde desenvolvem trabalhos ligados a arte; como música, pintura, artesanato e cinema.
Tive a oportunidade de conhecer os rapazes do
Buena Vista em Curitiba, onde o movimento oriundo do pequeno município de Las
Flores – norte da Argentina – aportou há pouco mais de um mês. Ao chegar na
capital do Paraná junto com servidores da Universidade Estadual do Oeste do
Paraná - que horas mais tarde fariam um protesto em frente a sede do governo -
me deparei com a cena que me chamou atenção.
Próximo ao Museu Oscar Niemeyer, em meio a
alguns ônibus típicos de excursões, estava um transporte antigo, pintado de
forma primária com cores vivas, tendo na porta uma estrela vermelha e acima do
pára-brisa a palavra 'Buena Vista'. Prontamente, o que me veio à cabeça foi
orquestra cubana Buena Vista Social Club e o desejo de me aproximar para saber
o que estava por trás daquele meio de transporte de mais de meio século.
Enquanto alguns tiravam foto em frente ao
ônibus, me aproximei e, percebendo que não se tratavam de brasileiros, me
apresentei como sendo periodista (jornalista). Entrei no ônibus – um Mercedes
Bens de 1957 – tendo todo seu interior decorado com pôsteres e recortes
relacionadas à música, com ícones como Bob Dylan, Bob Marley, Mercedes Sosa, Manu
Chao e Rolling Stones, além de lembranças de nosso continente, como bandeiras
de países da América do Sul e, obviamente, a foto mais reproduzida da história:
o olhar no horizonte de Che Guevara.
Para 'quebrar o gelo' - afinal se apresentar
como jornalista poderia não ser um bom começo - dei início a prosa com Tero,
Hipo, Enzo, Emilio, Feder e Juan, falando sobre a vitória do Boca Juniors na
Libertadores da América que havia acontecido na véspera, sabendo eu que o
futebol era algo que 'unia' brasileiros e argentinos. A confissão de ser um 'maradonista
confesso' foi a senha perfeita e acabei sendo apontado pelos hermanos como um 'caso raro' entre os brasileiros.
Acabei surpreendendo e ao mesmo tempo
divertindo os camaradas ao anunciar que os 'maradonistas' no Brasil não são tão
raros assim - talvez aqueles confessos - mas fiz questão de me certificar que não
contariam meu 'segredo' no lado de fora do ônibus, obviamente preocupado com
minha integridade física.
Entre os recortes que decoravam o ônibus, um
deles me chamou a atenção: Um adesivo escrito 'Bush, lo peor de todos' e abaixo
dele uma foto clássica de Muhammad Ali esmurrando um adversário; um João
qualquer como diria o Mané. Apontei e disparei: "Que contradição, acima o pior
e abaixo o melhor de todos!". Estava ali a senha para a passagem de nossa
prosa do esporte para a política.
Falamos da necessidade da integração dos
povos latino-americanos e os avanços promovidos por alguns governos de caráter
progressista em nosso continente - em especial o da Argentina - além da participação
dos jovens na política. Expliquei que estava na cidade para fazer a cobertura
de um protesto dos trabalhadores da universidade; eles interviram de pronto e
passaram a apontar as diferenças que sentiram nos meses que estão no Brasil em
relação ao ensino superior da Argentina.
Discorreram sobre a universidade argentina e
o acesso a ela. "Por lá todos tem acesso a universidade pública. Por aqui, nos
parece que se não há grana, não há estudo", falou Hipo, enquanto Juan –
deixando de lado o livro que lia – disparou: "A universidade por lá é mais
política". (entendendo-se 'mais política' como algo positivo e não com a velha
opinião formada sobre o senso comum). Citaram que, diferente de grande parte
dos estudantes por aqui, os universitários argentinos apóiam os movimentos
grevistas nas instituições, pois acabam se sentindo parte também da luta
reivindicatória.
Alguns do Movimento Buena Vista são formados
e outros trancaram seus cursos nas áreas de História, Turismo, Cinema e
Relações Internacionais. Todos eles estudaram na Universidade de La Plata, na
Grande Buenos Aires. "Las Flores é muito pequena, não há universidade, então estudamos
em La Plata, que fica há 200 quilômetros de nossa cidade", explicou Tero.
O grupo me contou que a atmosfera política
dentro da Universidade de La Plata é enorme, com os estudantes participando de
discussões diárias sobre política e os rumos da universidade. "Isso é histórico
por lá, foi em La Plata que houve o maior extermínio de militantes e estudantes
durante a ditadura", disse Hipo, me indicando o filme La Noche de Los Lapices,
que traz a história de sequestros de estudantes secundaristas durante o período
militar na Argentina.
Ao terminar minha prosa que passou de futebol
a política, questionei sobre o destino do Buena Vista dali pra frente. Falaram
que precisavam terminar alguns 'bicos' em Curitiba e que por ali ficariam por
mais alguns dias. De lá partiriam para o Mato Grosso do Sul. Depois disso é esperar
para ver até onde o Mercedes Bens 57 conseguirá levar esses aventureiros em
suas viagens embaladas por muito rock, reggae e musica latina, lembrando muito
a aventura da dupla que tinha a 'Poderosa de 1939'.
Tero, Fede, Emilio, Juan, Enzo e Hipo |
Qual o próximo destino do Mercedão 57? |