Médici cumprimenta delegação brasileira em 1970 |
A série mostra como as ditaduras militares na América do Sul que
integraram a Operação Condor - a 'multinacional do terror' criada para
exterminar a oposição de esquerda aos governos ditatoriais - estiveram presentes
no futebol. Muito já
tinha se falado sobre o envolvimento do futebol e política e como o esporte foi
usado como propaganda por esses regimes autoritários, porém, particularmente, acredito
que esse deva ser o material mais aprofundado sobre essa relação.
O esporte
bretão e a pátria, o futebol e o povo, dois elementos que sempre estiveram unidos e com frequência políticos e
ditadores especularam com esses vínculos de identidade. Mussolini usou as vitórias da seleção italiana para fortalecer o regime
fascista na 'Velha Bota', assim como para os nazistas o futebol era uma "Questão
de Estado" e para os franquistas espanhóis o Real Madri era um modelo de legitimação,
uma espécie de "embaixada ambulante".
General Videla na Copa de 78 |
A grande
reportagem de Lúcio de Castro passa por quatro países de nossa América: Argentina,
Chile, Uruguai e Brasil – países que tem em comum a paixão pelo futebol e a política.
São várias passagens marcantes nas quatro partes do programa; na Argentina
onde há algumas quadras do Monumental de Nuñes – estádio do River Plate e
principal palco dos jogos da Copa do Mundo de 1978 – funcionava um dos maiores centros de
tortura da ditadura argentina.
Fatos
marcantes da ditadura de Pinochet, a derrubada de Salvador Allende, a partida "kafkaniana"
disputada por somente uma equipe e histórias do Estádio Nacional que serviu como campo de concentração das vítimas do regime. Histórias
em terras charruas, do Mundialito de 1981 no Uruguai, a "subversão" do
ex-zagueiro Hugo De Leon (que vestiu a camisa do Grêmio) e a primeira vez que o
povo gritou: "Se va a acabar, se va a acabar la dictadura militar!".
Documentos e
passagens reveladoras dos Anos de Chumbo no Brasil e da seleção que foi mais
utilizada pelos militares: o excrete canarinho de 1970. Com um arquivo vasto
de pesquisa, Lúcio esmiuçou o que foi esse período onde os setores conservadores e elitistas temiam a "ameaça vermelha", preocupavam-se com os ventos que sopravam do Caribe, com o charme
dos barbudos de Sierra Maestra e com a possibilidade de "novos Vietnans" em pleno
Cone Sul.
O "João Sem Medo" |
Ditaduras
tem o poder de confiscar símbolos nacionais e por aqui isso foi muito bem
feito - como mostra o documentário. "Ame ou deixe-o" e "Pra Frente Brasil" que o digam. O
programa detalha a perseguição implacável a João Saldanha, o "João Sem Medo". Comunista
convicto, foi derrubado do cargo de técnico da Seleção pela
ditadura e sofreu uma perseguição voraz dos militares, sendo inclusive proibido de fazer a cobertura esportiva da delegação brasileira no
México. Então contratado pela BBC para fazer artigos sobre a copa, Saldanha teve credenciais negadas pela então CBD [Confederação Brasileira de
Desportos] em virtude de seus comentários considerados "incendiários".
Memórias do
Chumbo traz "furos jornalísticos" como o caso do major Roberto Câmara Guaranys –
torturador do regime – que foi o chefe de segurança da delegação brasileira na
Copa do México; uma entrevista com o jornalista Luis Claudio Cunha, autor do
livro Operação Condor: o sequestro dos uruguaios, com detalhes do sequestro que teve
participação do ex-jogador Didi Pedalada, que após passagens por vários clubes
- entre eles o Internacional - foi prestar "serviços" ao DOPS gaúcho.
Revelações
sobre o "Rei" que, após voltar campeão de terras astecas, foi ao DOPS
dedurar "comunistas" que haviam lhe procurado no exterior para assinalar um documento
contra a ditadura no Brasil e pedindo a anistia de presos políticos. A
informação consta em documento oficial do 21 de outubro de 1970 que só agora
aparece. Procurado pelo programa, Pelé e sua assessoria não se manifestaram sobre o assunto.
Memórias do
Chumbo: O Futebol nos Tempos de Condor é uma ótima sugestão para aqueles que
são apaixonados por história, por futebol e por política. Fundamental para pesquisadores
destes tempos de censura, suspensão do direito de votar, intervenção em sindicatos, cassação de direitos políticos, proibição de atividades ou manifestações de natureza política e fim
do Estado de Direito.
Agraciado
pela participação especial de Eduardo Galeano – outro pesquisador sobre o tema –
Lúcio de Castro foi autor de um trabalho jornalístico único. Um documento
histórico primordial no momento em que se discute a recuperação da memória e se
cobra punição àqueles que cassaram direitos dos trabalhadores, torturaram, assassinaram com garras do Condor e seguem impunes.
"(...)a impunidade estimula o delinquente, seja um
delinquente militar, civil, seja individual, seja coletivo, a impunidade é o
motor maior para a repetição dos crimes".
Eduardo Galeano