quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

O show, o general e a soberania alheia

Estava quase convencido a não postar nada sobre o show rural, confesso que o assunto não me atrai e a cobertura da mídia corporativa já é mais do que suficiente, mas algumas lembranças me fizeram acabar dando um "pitaco", não sobre a feira em si que acontece desde 1989 em Cascavel – quando ainda era Dia do Campo – e que hoje tem uma "aura" espetaculosa, de vitrine de grandes transações, ao qual o antigo nome já não teria o menor sentido.

Também não vou discutir modelo agrícola, da escolha pela agricultura familiar voltada a produção orgânica ou a das monoculturas dos agrotóxicos e das commodities - pois tecnicamente um camponês tem bem mais propriedade (não posse) para tanto. Melhor deixar o assunto para outra ocasião, pois certa vez em minhas andanças pela imprensa comercial fui colocar o debate em pauta em uma entrevista com o presidente "vitalício" da cooperativa e a resposta não foi das mais "educadas".

A lembrança de quando ainda me aventurava na mídia tradicional (...) e minha recordação da feira me fez buscar um exercício de contextualização sobre outro tema: a luta pela terra. Confesso que não lembro em quantas oportunidades precisei fazer a "cobertura política" do show. O simples fato da feira ter uma cobertura política já é um caso à parte, afinal, alguns "figurões" sempre fazem do evento seu próprio "showzinho" particular, principalmente quando a feira coincide com anos eleitorais.

Nesse clima, "autoridades estabelecidas" desembarcam no velho oeste e desfilam pelas ruas internas do parque como se fosse uma passarela eleitoral, escoltados por um rol de "aspones", outras "otoridades" não tão estabelecidas ainda e uma comissão de frente capitaneada por um fiel "relações públicas". Os figurões criam um clima de cordialidade mútua, apertos de mãos, tapinhas nas costas e sorrisos amarelos. Puxa-sacos de plantão, figurões locais e parte da imprensa ajuda no cenário com a massagem no ego desses "craques", dessas figurinhas carimbadas.

Em uma dessas oportunidades - em 2009 - estava entre os figurões o ex-general paraguaio Lino Oviedo, muito bem quisto no evento devido à amizade com grandes produtores rurais da região. Lembro que enquanto alguns falavam da "magnitude da feira", resolvi questioná-lo sobre a luta agrária no Paraguai e a questão dos brasiguaios - que não é de hoje e nem da última década, mas que teve início no final dos anos 70.

O papo com Oviedo - não só pela feira em si, mas pela forma como grande parte da mídia corporativa  trata a situação - me veio à lembrança nos últimos dias. Lembro do militar culpar Fernando Lugo pela situação na fronteira, lembro dele exaltar a produção dos "sojeiros", mas de maneira alguma tocar na contextualização histórica ao ser incitado. O foco de Oviedo - hoje candidato declarado à Presidência do Paraguai - se assemelha em muito ao enfatizado pela imprensa tupiniquim.

Todos sabemos que a luta pela terra no Paraguai tem se acentuado com as ocupações feitas pelos "carperos", cerca de 18 mil camponeses que não possuem terras em seu próprio país, mas que não tem o mesmo espaço editorial na nação ocupada em grande parte por latifúndios de brasileiros, que tiveram uma "mãozinha" na aquisição dessas propriedades. 

A lógica agrária no Paraguai sempre esteve diretamente ligada aos partidos tradicionais do país, que instauraram durante décadas um poder ditatorial no campo. Os poderes militares e autoritários que dominaram o país até a eleição de Lugo promoveram por décadas, na base da repressão e dos benefícios concedidos a setores e funcionários do Estado, uma política agrária nacional conhecida como de "bem-estar rural", onde os beneficiados foram latifundiários e a burocracia político-militar.

Enquanto a propaganda da imprensa brasileira e paraguaia (em partes) vende o "desenvolvimento" e a "modernização do campo", o que se tem visto é que os latifundiários sojeiros não estão preocupados em enriquecer a economia paraguaia, pelo contrário, tem provocado empobrecimento do solo, redução da quantidade de terra para o plantio de alimentos, encarecendo os preços dos produtos agrícolas. Essa é a lógica da agricultura de monocultura extensiva das commodities.

Entender a situação agrária no Paraguai passa por lembrar que na década de 70, o governo militar de Alfredo Stroessner passou a entregar praticamente de graça as terras de seu país aos latifundiários brasileiros. Até 1967, existia por lá uma lei que proibia a compra de terras por estrangeiros na faixa de 150 km de suas fronteiras. Com a abolição da lei, houve uma migração em massa de brasileiros para o Paraguai, inclusive da região Oeste e Sudoeste do Paraná. A partir daí, o Paraguai passou a ter a soja como principal base de sustentação e sua principal pauta de exportação, tornando-se refém de grandes multinacionais.

Tratar o tema do campo no viés do clima do medo e do "estado de exceção" cheira a orquestração, é colocar trabalhador contra trabalhador, pois apesar de poucos noticiarem muitos desses brasiguaios são trabalhadores que foram trabalhar em grandes fazendas de grileiros brasileiros, ou seja, também são sem-terras que precisam ser assentados em seu país de origem, mas que são constantemente jogados contra sem-terras paraguaios. E não será conclamando o braço militarizado de Estado que a situação se resolverá.

Luta pela terra é questão de soberania nacional, um debate que retornou e tem se acentuado no Paraguai nos últimos anos. Ele ficou engasgado durante anos de ditadura e tentativas de golpes de Estado, entre elas uma que - diga-se de passagem - o próprio Oviedo é acusado de tramar. Com o retorno do debate, retornaram as lutas sociais na nação vizinha, mas ao avaliarmos a cobertura de grande parte da imprensa corporativa - tão em sintonia com o modelo dos feirões do agrobussiness - podemos tirar a conclusão que muitos no Brasil ainda têm problema com a democracia, especialmente a democracia alheia.

3 comentários:

  1. Os ruralistas são parte influente do bloco de poder que governa Brasil e Paraguai.

    Somente nos países em que eles não são dominantes como força política reacionária tem havido avanços democráticos, como na Bolívia, Equador e Venezuela.

    No Brasil e no Paraguai eles são fortíssimos, o que explica a paralisia da Reforma Agrária.

    Os ruralistas deitam e rolam, atrelando o governo, que puxa obediente sua pesada carroça.

    Mesmo em um quadro de paralisia institucional, porém, o povo segue sua marcha e desenvolve a luta pela desapropriação dos latifúndios grilados durante as ditaduras.

    Se depender dos festivos ruralistas que deitam e rolam no Brasil e no Paraguai, eles continuarão a se divertir com a canção do excluído (O Orvalho vem Caindo, do inesquecível Noel Rosa):

    "Minha terra dá banana e aipim
    O meu trabalho é encontrar
    quem descasque por mim”

    Eles querem os carperos como seus descascadores.

    Quem nem pensem nem ousem se pretender donos de sua própria terra!

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  2. Julio,


    Ótima análise sobre a crise agrária no paraguay.

    Parabéns.

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  3. seja aqui ou lá, a questão agrária possuí elementos muitos parecidos. A imprensa em muito se assemelha. Ainda bem que há espaços como este para um contraponto que, embora não tenham o mesmo alcance, são importantes para uma analise honesta.

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